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quarta-feira, 21 de maio de 2008

DO OUTRO LADO DO ESPELHO...

Enquanto passavas por mim deixaste cair as memórias do teu bolso do casaco. Tentei entregar-tas, gritando o teu nome. Não o sabia. É certo. Apenas sabia que tinhas passado por mim e deixado um sinal de alerta. Consciente ou não desse gesto. Interpretei-o como um náufrago no deserto da cidade, que não sabe onde se encontra a verdadeira fonte. Todas as pessoas puxam e empurram, e todos os cantos são perfeitos para alguém se esconder. Quando sabe que o quer fazer.

Corri à tua procura mas também já tinhas abandonado o casaco a um canto qualquer. Vi-o num mendigo sorridente, e sem dentes, que mastigava uma prece qualquer. Colava lágrimas no forro do teu casaco para o caso de um dia voltar a precisar delas. Estariam ali. Não seriam como as pessoas que abandonam e são abandonadas a qualquer altura e em qualquer lugar.
Sem o corpo que te conheci não te identifiquei e eras igual a todos naquela imensa multidão…

...senti-me como um rio que finalmente chega ao mar com as mãos cheias de passado. Atrás de mim ficava a estrada que nunca pensara ter coragem para abandonar. Nem quis olhar para trás. Não saberia voltar. Agora que tinha saído de casa entrara no mundo. E ele era absoluto. Tudo o que eu queria e não queria.

Olhava os rostos que passavam por mim, acelerados e arrastados por coleiras invisíveis e que pareciam não ter fim. Corri um pouco mais do que elas para reconhecer aquela mão que as segurava. Um Kronos cansado olhou para mim e perguntou-me as horas. Sabia as de toda a gente menos aquelas que eram as dele. Tão pouco eu as sabia. Estava perdida mas achada entre cada um daqueles corpos que se aglomeravam na velocidade da vida. As ruas, com calçadas de medo e de esperança, tinham lábios meigos que sussurravam esperanças a quem parecia quase cair.

Onde andavas tu não o sabia…mas as minhas mãos ainda seguravam as tuas memórias, entre teias estendidas pelo céu ardente. Chegavam até mim como um pensamento constante e assim soube o que era ter um objectivo. Apenas mais um.
Corria mais um pouco e nem dei conta do coração a soltar-se na minha expiração. Balões quentes de corpo e de alma pairavam como sinais luminosos sobre mim. Cada passo que dava deixava o início do fim de mim mesma…mais um pouco à frente e o meu corpo terminava na minha sombra. Mais um pouco à frente, sim, e eu desaparecia. Para sempre.

Um dia destes vou devolver-te o teu passado que se fechará na porta do teu bolso enquanto eu retomarei, sossegadamente, o meu caminho de regresso, com peso a menos no meu coração. Um dia destes, encontrarei o teu casaco com o dono certo e com as lágrimas do vagabundo no teu olhar. Será apenas chuva para ele; será completamente a dor do teu passado a visitar-te.
Quis deitar fora as memórias e esquecer que te procurava para tas entregar. À minha frente crescia o mar de gente, que se dispersava acertadamente por portas e mais portas de obrigações, de compras e de vendas, de sorrisos e de apertos de mão, de comes e bebes, de médicos e cangalheiros…a vida e a morte partilhando o mesmo espaço. Parei apenas no meio de todas elas.

Desamarrotei o papel que as embrulhava e fiquei paralisada. Presa dentro de cada linha e de cada imagem que gritavam. Era eu e apenas eu quem ali estava; naquele monte de folhas recheadas de passado. O casaco que fora abandonado para não deixar qualquer sinal ou lembrança era apenas a minha alma…e o corpo que eu procurava era também apenas e somente o meu.
Dei a mão a mim mesma.

Chegara ao fim do mundo.

18 comentários:

Képia disse...

epá Su, fico estasiada a olhar para as tuas imagens....

super estrélicas e estrondónicas!!!

possa que bom gosto!!!

Képia disse...

epá Su, fico estasiada a olhar para as tuas imagens....

super estrélicas e estrondónicas!!!

possa que bom gosto!!!

Képia disse...

ops.... mandei duas vezes :/ :/

olhaaa pronto fiquei estasiada a dobrar vês é mesmo verdade ahahah!!!

Képia disse...

ops.... mandei duas vezes :/ :/

olhaaa pronto fiquei estasiada a dobrar vês é mesmo verdade ahahah!!!

Képia disse...

suu desculpa mas isot esta correr mal :Z

:Z

Porcelain disse...

Eheheh... que delícia... tu no teu melhor... inspiraste-me...

Procuramos por nós mesmos a vida toda... nos objectos de que nos rodeamos, nas pessoas com que nos encantamos... é sempre o nosso reflexo o nosso objectivo... a curiosidade de nos perceber um pouco mais...

Enquanto passavas por mim deixaste cair o grito de desespero de tudo o que tens dentro de ti e não consegues deixar sair... escorregou-te das mãos, transbordou-te dos olhos fixos em mim como se pedisses ajuda num olhar embevecido que nunca esquecerei... não tinha a certeza se podia ajudar-te... fui para longe, mas tu foste atrás de mim... o teu olhar perdido perseguia-me e não me deixava dormir... cedi e procurei-te, mas já não te encontrei... tentei gritar o teu nome, mas já não me ouviste... perdes-te-te de mim na multidão...

Apenas sabia que tinhas passado por mim e deixado um sinal de alerta. Consciente ou não desse gesto. Interpretei-o como vindo de um náufrago de si mesmo, perdido nas suas próprias emoções... senti-me como um rio que finalmente chega ao mar com as mãos cheias de passado encaixado, justificado, compreendido... atrás de mim ficava a estrada que tanto desejara abandonar... não quis olhar para trás, mas tive de o fazer, pois no passado estava tudo o que eu precisava compreender... todas as pistas para te encontrar, as encontrar de verdade, não só reencontrar... ou a tua mão escorregaria da minha e perder-te-ia para sempre no meio da gente que é toda igual... tentei voltar atrás, mas havia esquecido o caminho de volta ou encontrava-se irremediavemente cortado... agora que tinha saído de casa entrara no mundo... não sabia se era isso que eu queria... um mundo cheio de tudo o que eu queria e não queria.

Olhava os rostos que passavam por mim, que me perguntavam as horas... tão pouco eu as sabia... estava achada mas perdida entre cada um daqueles rostos vestidos de medo e de esperança... e eu sussurrava-lhes palavras meigas de esperança para acender a esperança em mim mesma...

Quase enlouqueci, mas não te perdi de vista, não te larguei a mão, mas o nevoeiro do medo não me deixava distinguir os contornos do teu rosto... confundi-te com outrém... como pude... o coração soltava-se na minha expiração, quase me matando de desespero, pensava que eras o meu pesadelo... mais um pouco à frente e eu desaparecia. Para sempre.

E reaparecia logo a seguir misturada contigo. Para sempre.

A dor da minha própria ingorância mostrou-me a verdade... mostou-me a deslumbrante imagem do teu rosto, o meu sonho ainda mais belo... o pesadelo fora apenas fomulação maléfica da minha mente... enganara-me voluntariamente.

Onde vi pesadelo estava apenas a minha alma e eu mesma disfarçada... como pude... tenho apenas aquilo que na minha ignorância fiz por merecer...

E a luz veio repentinamente, mas desejadamente, de desejo desesperado, mas expectavelmente onde, esquecendo o nevoeiro e o pesadelo, eu soube que ela sempre viria.

Porcelain disse...

Eheheh, linda Su percebes agora por que é que a louca Képia é top na minha lista de amigos?? :-DDDD

Beijo grande para as duas!!

Porcelain disse...

E já agora, eu também fico extasiada com as tuas imagens... um dia tens de me explicar como consegues isto... bjoka!

Oliver Pickwick disse...

Uma impecável narrativa em prosa poética bem ao seu estilo. É reconhecível, tem a sua identidade: made in Su. E, com o velho e costumeiro toque de grandiosidade, de aventura de Ulisses, da busca do velo de ouro, apesar do enredo urbano e ações dos dos dias atuais.
Somente você consegue tal "efeito" na blogosfera. Continua minha favorita neste gênero ;)
Um beijo!

Teté disse...

Um texto fantástico, que mistura sonho, pesadelo e ilusão, num ritmo citadino, muito actual...

ADOREI!!!

Jinhos, amiga!

O Árabe disse...

Belo texto, Su, e belas imagens. Impressionaram-me, confesso. :) Bom fim de semana, amiga.

Menina do Rio disse...

Retrato intenso e apaixonante da busca por nós mesmos...

Um beijo

Alma Indigo disse...

Dificil é comentar... :) Excelente é pouco, li sem parar e tenho imensa vontade de repetir. Su é realmente um prazer ler-te, parabéns!!!

bjos

Alma Indigo disse...

Dificil é comentar... :) Excelente é pouco, li sem parar e tenho imensa vontade de repetir. Su é realmente um prazer ler-te, parabéns!!!

bjos

Kátia disse...

"Um dia destes vou devolver-te o teu passado que se fechará na porta do teu bolso enquanto eu retomarei, sossegadamente, o meu caminho de regresso, com peso a menos no meu coração."

Amiga,confesso:CHOREI!

Tocou-me,tocou-me.Que coisa!E essa canção de fundo.Linda,linda.

É eu preciso buscar os pedacinhos estilhaçados dentro de mim,ainda tem alguns que ainda estão perdidos.Obrigada por me fazer lembrar.

Beijo e cheiro pra ti minha querida.

Matchbox32 disse...

Gosto muito do que escreves mas, não sei porquê, desta vez excedeste-te... ADOREI! Talvez porque me tocou muito... senti este texto como se tivesse sido eu a escrevê-lo. Adorei mesmo...

Ruela disse...

muito bom ;)


bjs.

~ Marina ~ disse...

Limito-me a dizer isto: perfeito, belo!

Beijos pra ti!