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sábado, 1 de dezembro de 2007

FRAGMENTOS

Não sei se já acordei.
Escondo-me do olhar do espelho que me assusta. Não me reflecte para além do escuro que me habita frequentemente. E se o olho, também, envelheço nessa imagem que se me apresenta. Os dias pesam ao canto dos olhos e o sorriso dos mesmos desliza, sinuosamente, como máscara estranha que cai, perante um acto terminado. O palco dos sonhos fica para outra história, onde as personagens sejam outras que não eu. Em que a outra face dada não seja a minha e em que os pés que caminham sobre as águas não sejam estes que se arrastam pelos pântanos. Para além de que estas águas são frias. Profundas. Traiçoeiras. Desdenhosas.
Trago da noite o sussurrar lento de mil asas de anjos perdidos que passam, apenas, por mim, numa auto-estrada até ao Inferno. Tentam resgatar aquela imagem que não sabe se já acordou. Estátua de sal ou mulher que olha para trás: a sua dura e eterna prova será nunca confiar em si mesma.
E se estava escuro, mesmo assim, o espelho procurava-a. Oferecendo-lhe a mão que apenas era sua, sem presentes nem passado, sem lugar onde se recolher. Os seus lábios, frios, soletravam, sem voz, o que eu escutava dentro de mim. Traçavam desenhos de sentido nas paredes embaciadas da minha mente.
Deixei os seus dedos tocarem-me. Aniquilarem-me, sem nexo, porque sentia, também, a sua extrema doçura.
- A morte sabe tão bem…também…

- Tu sabes melhor do que eu…vive-la todos os dias. Deixa-me tocar-te. Para além desta pele, destes dedos, destes ossos. Para além do que possas sentir. Deixa-me adormecer a tua dor, suavizar a tua alma. Tomar-te como a sombra do meu corpo, sendo o meu próprio corpo. Anestesiar-te com a indiferença.

- Serei, somente, o que restar de mim mesma?

- Não serás menos do que restas agora.
Tirei-lhe a mão, suavemente, da minha mente e não aceitei. Não por medo. Apenas por qualquer coisa. A apatia que me corre nas veias bombeia-me em estados sucessivos de indecisão e de projectos adiados. Encosto a face ao espelho e com a outra mão faço estilhaços imunes à dor de qualquer dia ensolarado. Mil estrelas de vidro e de gelo baptizam-me como lágrimas desmanchadas. Rastos brilhantes tatuando a pele a gelo ácido. A aranha que corre, atrás da perda, costurando as feridas com fios de esperança, não vence a letargia sonâmbula que cicatriza ainda mais profundamente.
Fogem fantasmas de mim mesma por entre as novas feridas e poros dementes e, de facto, quando arrisco um novo olhar ao espelho…já nem ele me olha: não resta nada.

- Acorda…acorda

Agora sei que acordei.

23 comentários:

Som do Silêncio disse...

Só me ocorre uma palavra...
Fantástico!

Bjs

impulsos disse...

São textos como este que me lembram o quanto se é insignificante perante os sonhos que se projectam e se ficam por isso mesmo...
Escreveste algo assustadoramente belo!
Por mais que tentasse, nunca o saberia escrever assim...
Qualidade e sensibilidade é o que mais se destaca em todo ele.
Adorei!!

Um beijo

PS. Aceitei um desafio que muito me agradou e que agora te lanço com o mesmo prazer que me deu a mim.
ENCRUZILHADAS
[Compôr um post em prosa/conto ou poesia com o título dos últimos 10 posts, usando outras palavras, pelo meio, para dar sentido ao todo]

Susana Júlio disse...

som do silêncio: Um sonho do âmbito do fantástico, isso sim! Entre as brumas do pesadelo e do sonho: a pópria consciência. Obrigado.

impulsos: Os nossos sonhos são edificações esmagadoras que nos ultrapassam em diferentes sentidos. Apenas recebemos códigos e mais códigos que nos vão influenciando ao longo do quotidiano. Mas será este quotidiano mais do um longo e vívido sonho? Obrigado, amiga.

O desafio já está em consideração. Já mo colocaram por duas vezes, portanto não tenho mesmo escapatória possível, está-se mesmo a ver! : )

Teté disse...

Belíssimas fotos, a ilustrar um texto simplesmente fantástico!

Jinhos, amiga!

Rafeiro Perfumado disse...

O texto está tão cativante que vou resistir a mandar a piadinha "então agora que acordaste, vai lavar a cara que estás cheia de remela". Beijoca!

Susana Júlio disse...

teté: Obrigado amiga. Sempre que é posssível conjugar as coisas faz-se por isso! : )

rafeiro perfumado: Afinal não resististe! Mas é o que dá sonhar acordada! Ou "pesadelar"! Beijinhos.

Azer Mantessa disse...

i am awaken too :)

nice and very very deep :-)

S. G. disse...

Vim agradecer as palavras deixadas no meu cantinho.

Quando tiver oportunidade, vou ler este com muita calma e dedicação.

De parabés estamos todos que tivemos a coragem de nos expormos às críticas :)

MIMO-TE disse...

Um texto fantástico, com uma carga fortissima!

Adorei, perco-me aqui! :)

beijo e mimos meus

Anónimo disse...

Acordar é a solução prática para não viver o pesadelo. Dormir é o medo de voltar a tê-lo. Mas, algures entre todos esses pedaços, está a matriz, a genesis, aquele instante em que te encontras contigo, reflectida em outro, espelho, ou não!

somentebia disse...

Atualizada a leitura e depois de admirar as imagens tão bem escolhidas foi que comecei a ler esse texto... sem palavras para exprimir minha admiração... SIMPLESMENTE FANTÁSTICO!!!

Um dos textos mais bonitos que já li aqui na blogosfera. Inveja de não tê-lo escrito (rs), inveja saudável, é claro (existe isso??? rs)

Lindo amiga, simplesmente lindo!

Ficam pétalas perfumadas de carinho, um beijo no coração, e o desejo de que ensolaradas horas coloquem sorrisos nos teus dias.

somentebia disse...

Fiquei tão empolgada com o texto que me esqueci de dizer que um amigo (proprietário de locadora) vai conseguir o filme para mim.

Assim que o assistir, comento contigo.

Lua disse...

Gostei bastante, continua..

Pierrot disse...

Não consegui ver o "teu" filme sabes porque tempo, valha-me Deus, falta-me e esvai-se-me.
Folgo em saber que acordaste ;-)
Bjos daqui
Eugénio

Matchbox32 disse...

Fantástico! Quando postas, deixas-nos a pensar... parabéns por mais um post fantástico e profundo que toca mesmo...

Susana Júlio disse...

azer mantessa: O difícil, muitas vezes, é distinguir entre o sonho e da realidade. Thanks!

fernando pessoa: De facto, acaba por ser um acto de coragem ter participado no desafio da tonsdeazul, submetendo-nos a todas aquelas críticas! A carta dela também deveria ter ido a concurso, mas a tua e a do carteiro mereceram a vitória justa!

mimo-te: Ainda bem que te perdeste por aqui. A Teia encontra-te sempre, logo, és bem-vinda! Obrigado!

noite: É...andamos muitas vezes em sobressalto da pertença e da não-pertença, do saber-se o que se quer e o não saber-se, o de ser daqui e de ser também dali...o meio termo que tanto atormenta. O reconhecimento e a fuga...por aí, é verdade...

somentebia: Muito, mas muito obrigado pelas tuas palavras...olha só para o meu sorriso a preencher o "ego"! : ) Pela blogosfera encontram-se textos maravilhosos. Imagina compilar tudo num enorme livro? A Bíblia Virtual da palavra?! :) Fico à espera da tua reacção ao filme, então. Beijinhos.

lua: Obrigado...parar é morrer. De facto, a vida é sempre em frente! E a escrita quando nasce assim dentro de nós é imparável. De vez em quando adormece, é verdade...

pierrot: "Compra" tempo! Vais ver que vai valer tanto a pena! Como te disse no teu cantinho é um acordar às vezes adormecido e por aí...o deambular. O viver. Beijinhos.

Susana Júlio disse...

matchbox30: Devemos ter comentado quase ao mesmo tempo! Assim, tens "direito" a um comnetário só para ti...eheheheheh...obrigado pelas palavras. Tudo o que queremos dizer aos outros, passou algures pelo processo de nos fazer pensar...assim, se fizermos o Outro pensar também...estamos no bom caminho. E tocar nos outros é mesmo muito mais do que o físico...saber tocar com as palavras ou com o olhar às vezes vale muito mais. Beijinhos!

Matchbox32 disse...

Bem! I'm feeling important! Lol! Mas tens toda a razão, o tocar com as palavras e com o olhar vale mesmo muito mais...

Susana Júlio disse...

matchbox30: O que é essencial muitas vezes é invível aos olhos! :) Isto estava mais ou menos assim escrito algures pelo livro O Principezinho!

Mel de Carvalho disse...

Acordaste sim, estás do lado de cá, os fantasmas ficam para além de ti, para além de mim... longe de nós.

Nenuquinha, deixei-te um desafio lá na minha casinha "NoitedeMel"

Volto aqui logo para ler com mais calma...

Beijos muito saudosos.

PS: No Luso está anunciada a presentação do meu livrito... claro que te quero comigo, vou mandar-te mail....

Beijo enorme e muito saudoso
Mel
www.noitedemel.blogs.sapo.pt

(o blospot é só para me receberes ... ehhhh)

Anónimo disse...

Sonho o absurdo do espelho que insiste em fincar-se a minha frente, refletindo não só a minha face, mas também os destroços duma Sodoma e doutra Gomorra que deixei por detrás. E ao fitar-me neste espelho sinto se solidificarem meus músculos, meu rosto a ficar com o olhar imóvel a me olhar... Espero por acordar e não ver o reflexo desta face que me olha sem expressão.

Palavras de Susana, a nos deixar perplexos e pensativos... magníficas mesmo! Bom demais passear pelos fios desta Teia! Beijos, André.

FERNANDA & SONETOS disse...

Olá SU, passei para deixar-te muitos beijinhos,
Fernandinha

Susana Júlio disse...

mel: Com toda a certeza que responderei ao desafio da Encruzilhada! Contigo, já me desafiaram três vezes! Dizem que à terceira é de vez...vamos a ver! E quanto à apresentação do teu livro, estarei lá dia 15, em princípio. Também será o mesmo momento de lançamento do livro do brain! :) Mereces! Tudo a correr bem sempre! Bejinhos grandes grandes. E assim os nossos fantasmas ficam realmente longe! ;)

andré: Os destroços de um passado olhando através dos nossos olhos imagem reflectida ao espelho é de puro génio...sobretudo quando esses destroços são imagem negativa da derrota. A imagem do presente é o rosto da vitória...daquele que ACORDOU! Excelente! Sempre ao nível do andré...a tua escrita! Quando voltas a abrir as portas do teu blog? Beijinhos!

fernandinha: Uma visita tão simpática e querida...com a poesia na escrita, também. Beijinhos.